domingo, 1 de março de 2009

Ainda os diários dos outros (5)

Do borbulhar dos ideais.
As estrelas crivavam de luz o céu daquele povoado serrano e o silêncio e o frio tornavam a escuridão imaterial. Era- não sei bem como explicá-lo- como se toda a substância sólida se volatilizasse no espaço etéreo que nos rodeava, nos roubava a individualidade e nos fazia sumir, transidos, na negrura imensa. Nem uma nuvem a bloquear uma porção de céu estrelado, para dar perspectiva ao espaço. No entanto, a uns metros, a luz mortiça de um farol dava alguma cor às trevas circundantes.
A cara do homem perdia-se na sombra. Só emergiam, como centelhas, os seus olhos e a brancura dos quatro dentes dianteiros. Ainda não sei se foi o ambiente ou a personalidade do indivíduo o que me preparou para receber a revelação. Mas sei que ouvira muitas vezes os argumentos empregados, esgrimidos por pessoas diferentes, e nunca me tinham impressionado. Na realidade, o nosso interlocutor era um tipo interessante; fugido, em jovem, de um país da Europa para escapara ao punhal dogmatizante, conhecia o sabor do medo (uma das poucas experiências que nos fazem dar valor à vida). Depois, viajando de país para país e passando por milhares de aventuras, tinha dado com os ossos nessa região afastada e ali esperava pacientemente o momento do grande acontecimento.
Depois das frases triviais e dos lugares comuns com que cada um apresentou a sua posição, quando já a discussão esmorecia e estávamos prestes a separar-nos, ele deixou cair esta frase, com o mesmo riso de garoto pícaro que sempre o acompanhava, acentuando o contraste dos quatro incisivos dianteiros: "O futuro é do povo e, pouco a pouco ou de repente, ele vai conquistar o poder, aqui e em toda a terra. O mau é que tem de civilizar-se e isso não se pode fazer antes, mas depois de tomar o poder. Só se civilizará aprendendo à custa dos seus próprios erros, que serão muito graves, que custarão muitas vidas inocentes. Ou talvez não, talvez não sejam inocentes porque cometerão o enorme pecado contra natura que significa não ter capacidade de adaptação. Todas essas vítimas, todos os inadaptados, você e eu, por exemplo, morrerão maldizendo o poder que contribuíram para criar, com sacrifício às vezes enorme. É que a revolução, na sua forma impessoal, roubar-lhe-á a vida e até utilizará a memória do que deles ficar como exemplo e instrumento para domesticar a juventude que surja.
O meu pecado é maior, porque eu, mais subtil ou com maior experiência, (chame-lhe como quiser) morrerei sabendo que o meu sacrifício corresponde só a uma obstinação. Que simboliza a civilização apodrecida que se desmorona e que mesmo que não modifique em nada o curso da história, ou a impressão pessoal que de mim tenha, você morrerá com o punho fechado e os dentes cerrados, numa perfeita demonstração de ódio e combate, porque não é um símbolo (algo inanimado que se toma como exemplo). Você é um autêntico membro da sociedade que se desmorona: o espírito da colmeia fala pela sua boca e move-se nos seus actos; é tão útil como eu, mas desconhece a utilidade do contributo que dá à sociedade que o sacrifica".
Vi os seus dentes e a expressão picaresca com que se adiantava à história, senti o aperto das suas mãos e, como o murmúrio longínquo, a protocolar saudação de despedida. A noite, depois de recuar ao contacto das suas palavras, tomava-me novamente, confudindo-se com ela. Mas, apesar do que ele dissera, agora sabia...sabia que, no momento em que o grande espírito director der o enorme golpe que dividirá toda a humanidade em apenas duas facções antagónicas, estarei com o povo. E sei, porque o vejo impresso na noite, que eu, o ecléctico dissecador de doutrinas e psicanalista de dogmas, uivando como um possesso, assaltarei as barricadas ou trincheiras, tingirei de sangue a minha arma e, louco de fúria, degolarei todos os vencidos que me caiam nas mãos. E vejo-me, como se um cansaço enorme derrubasse a minha recente exaltação. cair imolado à autêntica revolução estandardizadora de vontades, pronunciando o "mea culpa" exemplar. Já sinto as narinas dilatadas, saboreando o acre odor de pólvora e de sangue, da morte inimiga; já crispo o meu corpo, pronto para a luta, e preparo o meu ser como um reduto sagrado, para que nele ressoe, com vibrações novas e novas esperanças, o uivo bestial do proletariado triunfante.

in Viagem pela América, Ernesto Che Guevara

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