domingo, 1 de março de 2009

Ainda os diários dos outros (4)

Dos momentos de verdadeira transcendência e eloquência, elevadas pela sinceridade da palavra jovem e sonhadora.
À noite, depois de passar por casa do doutor Bresciani, que nos presenteou com uma rica e abundante refeição, receberam-nos no nosso refeitório com a bebida nacional, o pisco, de cujos efeitos no sistema nervoso central Alberto tem experiência exacta. Já com ânimos um tanto alegrados, o director da colónia fez-nos um brinde muito simpático e eu, já meio "piscado", elaborei mais ou menos o discurso que se segue:
"Bom, é uma obrigação para mim agradecer com algo mais que um gesto convencional o brinde que nos oferece o Dr. Bresciani. Nas condições precárias em que viajámos, só nos resta a palavra como recurso da expressão afectiva, e é empregando-a que quero manifestar o meu agradecimento, e o do meu companheiro de viagem, a todo o pessoal da colónia que, quase sem nos conhecer, nos proporcionou esta magnífica demonstração de afecto, que significa para nós a deferência de festejar o nosso aniversário, como se fosse a festa íntima de algum de vós. Mas há algo mais; dentro de poucos dias deixaremos o território peruano, e por isso estas palavras assumem um segundo significado, o de uma despedida. Aqui ponho todo o meu empenho em expressar o nosso reconhecimento a todo o povo deste país, que sempre nos cumulou de amabilidades, desde a nossa chegada a Tacna. Quero salientar mais uma coisa, um pouco à margem do tema deste brinde: ainda que a modéstia das nossas pessoas nos impeça de ser porta-vozes de tal causa, cremos, e depois desta viagem mais firmemente que antes, que é completamente fictícia a divisão da América em nacionalidades incertas e ilusórias. Consitituímos uma só raça mestiça que, desde o México até ao estreito de Magalhães, apresenta notáveis semelhanças etnográficas. Por isso, procurando libertar-me de toda a carga de provincialismo estreito, brindo pela Perú e pela América Unida".
As estrelas crivavam de luz o céu daquele povoado serrano e o silêncio e o frio tornavam a escuridão imaterial. Era- não sei bem como explicá-lo- como se toda a substância sólida se volatilizasse no espaço etéreo que nos rodeava, nos roubava a individualidade e nos fazia sumir, transidos, na negrura imensa. Nem uma nuvem a bloquear uma porção de céu estrelado, para dar perspectiva ao espaço. No entanto, a uns metros, a luz mortiça de um farol dava alguma cor às trevas circundantes.

in Viagem pela América, Ernesto Che Guevara

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