domingo, 29 de março de 2009

(KO)isas (com) sentido (18)

É simples: aqui, tens os carregadores e os tocadores de piano.
E por cada 4 carregadores, surge 1 tocador volta e meia.
E ao que parece, quase todos nós nascemos para carregadores. É assim.

Mas afinal de contas, quem os afina?

quarta-feira, 25 de março de 2009

(KO)isas sem sentido (14)

A casa: 10 segundos para a desarrumar, uma tarde para voltar a pôr no sítio.
A Natureza é por si injusta.
E a entropia a maior criminosa que pode existir.
Em todo o lado, sempre ausente (como o outro). A monte.
Quem a apanhar, por favor que a desfaça em mil pedaços. Obrigado.

terça-feira, 24 de março de 2009

N´á legendas, N´á nada...

...Foi tudo de férias para o Burkina Faso.
E ficou ISTO:
(quem é como quem diz uma asneira daquelas com tracinho e se,
seguida de centenas de pontos de exclamação)

«Havias de me ver reinar»

Admiráveis mundos Novos.

Yo-Yo Ma & Bobby McFerrin - Hush little baby

domingo, 22 de março de 2009

...

I should have met you when I was sixteen.

sábado, 21 de março de 2009

"Noites iguais"

"Nos dias do equinócio é possível obter uma medida aproximada da latitude por um observador munido de instrumentos muito simples: um fio de prumo, uma fita métrica e um relógio. Para tal, mede-se o tamanho da sombra de um fio de prumo ao meio-dia local.

Sendo h o comprimento do fio de prumo e l o tamanho da sombra na horizontal, a latitude lat, medida ao meio-dia local num dia de equinócio, é dada pela fórmula lat = arctan(l / h)."


Equinócio

Chega-se a este ponto em que se fica à espera
Em que apetece um ombro o pano de um teatro
um passeio de noite a sós de bicicleta
o riso que ninguém reteve num retrato

Folheia-se num bar o horário da Morte
Encomenda-se um gim enquanto ela não chega
Loucura foi não ter incendiado o bosque
Já não sei em que mês se deu aquela cena

Chega-se a este ponto Arrepiar caminho
Soletrar no passado a imagem do futuro
Abrir uma janela Acender o cachimbo
para deixar no mundo uma herança de fumo

Rola mais um trovão Chega-se a este ponto
em que apetece um ombro e nos pedem um sabre
Em que a rota do Sol é a roda do sono
Chega-se a este ponto em que a gente não sabe


David Mourão-Ferreira

Modo: fim de semana

Diz que se liga (em grande estilo) após carregar aí no botão play.
Terapêutico (q.b. id, sem efeitos conhecidos de sobredosagem).
Bom (...).

Nina Simone - Ain´t got no, I got life (Groovefinder remix)



I ain't got no home, ain't got no shoes
Ain't got no money, ain't got no class
Ain't got no skirts, ain't got no sweater
Ain't got no perfume, ain't got no bed
Ain't got no mind,

Ain't got no mother, ain't got no culture
Ain't got no friends, ain´t got no schoolin'
Ain't got no love, ain't got no name
Ain't got no ticket, ain't got no token
Ain't got no god

and what have I got?
why am I alive anyway?
yeah what have I got?
nobody can take away?...

Got my hair, got my head
Got my brains, got my ears
Got my eyes, got my nose
Got my mouth, I got my smile

I got my tongue, got my chin
Got my neck, got my boobies
Got my heart, got my soul
Got my back, I got my sex

I got my arms, got my hands, got my fingers,
got my legs, got my feet, got my toes,
got my liver, got my blood..

I've got life,
I've got my freedom
I've got life
I've got life
and I am gonna keep it
I've got life
and nobody's gonna take it away
I'VE GOT LIFE!!!

sexta-feira, 20 de março de 2009

Sem comentários (6)

A via óptica (ou parte dela), directamente do Neurological Differential Diagnosis, John Patten.

quarta-feira, 18 de março de 2009

«Petra»

No meio do caminho tinha uma pedra
tinha uma pedra no meio do caminho
tinha uma pedra
no meio do caminho tinha uma pedra.
Nunca me esquecerei desse acontecimento
na vida de minhas retinas tão fatigadas.
Nunca me esquecerei que no meio do caminho
tinha uma pedra
Tinha uma pedra no meio do caminho
no meio do caminho tinha uma pedra.


No meio do caminho, Carlos Drummond de Andrade

(KO)isas sem sentido (13)

Publicidade a próteses auditivas na caixa do correio todo o santo dia.
Não há paciência. Valham-nos os "ouvidos moucos".
Ou será que metem aquela porcaria a quem (como eu) simplesmente não atende a campainha?

Do you "clap clap clap"?

Keren Ann - Lay your head down


Retirado do sítio onde vou frequentemente "roubar" um outro segredo dos temperos quotidianos.
E sem rodeios, num claro forcing para um turning-back.

domingo, 15 de março de 2009

Para-phrase-ando (2)

«...Há pessoas assim. Que se revelam devagar, que não têm qualquer pressa em mostrar como são, em chegar ao nosso ombro, à nossa frente. Pessoas que têm o tempo do seu lado. O exacto contrário de mim que habito a ansiedade de todas as horas. A primeira vez que a vi nada vi a não ser uma cara, um corpo, gestos. Não me apercebi da clariade da sua face, do seu corpo longo, dos gestos lentos e delicados das mãos e dos braços, das suas incisivas palavras. Demorei muito tempo. Tempo a mais...».

in O Mundo É Tudo o que Acontece, Pedro Paixão

Para-phrase-ando (1)

«É imperioso não esquecer de onde viemos. Da fome, da sede, da servidão. Se assim não for não se saberá habitar sem a indispensável poesia.»

in O Mundo É Tudo o que Acontece, Pedro Paixão

(KO)isas sem sentido (12)


O Céu cá de baixo.
Ainda há quem precise de mais. Mas para quê?
Duvido que haja melhor.

domingo, 8 de março de 2009

Uma imagem vale mais do que mil palavras

[E eu que nem sou grande fã de B.D.]

(Deliciosamente enviado pela Paula em início de semana.)

Pois, reinventemo-nos/reorientemo-nos então.

(KO)isas (com) sentido (17)

Do capítulo das viagens no tempo.

Pixies - Gigantic (live)


O Death to the Pixies na estante a 30 cm da minha mão e 1997 (ano desta compilação) há já 12 anos atrás.
Gritava-se então ao Deus de Ará das borbulhas faciais e pelos 4 cantos: «Gigantic, gigantic, gigantic, A big big love», comandado por uma melodia juvenil, uma voz feminina doce e um baixo de fundo. Numa música que parece que foi feita só para encher algumas juventudes de sentido, de alguma coisa grande.

Havia de ser cobrado um imposto para o saudosismo e aí sim, a ver se isto não andava para a frente.

sábado, 7 de março de 2009

Estreito de Magalhães

Qualidade da leitura é aquilo que poderá deixar de existir caso as «autoridades» continuem a pensar que o uso do computador Magalhães substitui tudo o «resto». Na cabeça desses enormíssimos talentos não cabe uma ínfima parte do «resto»- a leitura pausada, manuseando livros, construindo universos, destruindo certezas, folheando ao acaso. António Barreto, nesta edição da Ler, diz o essencial: «A leitura na escola é a última das preocupações [...] Da maneira como o Governo aposta na informática, sem qualquer espécie de visão crítica das coisas, se gastasse um quinto do que gasta, em tempo e recursos, com a leitura, talvez houvesse em Portugal um bocadinho mais de progresso. O Magalhães, nesse sentido, é o maior assassino da leitura em Portugal. Chegou-se ao ponto de criticar aquilo a que chamaram "cultura livresca", o que é terrível. É a condenação do livro. Quando o livro é a melhor maneira de transmitir a cultura. Ainda é a melhor maneira. A coroa de todo este novo aparelho ideológico que está a governar a escola portuguesa - e noutras partes do mundo- é o Magalhães. Ele foi transformado numa espécie de bezerro de ouro da nova ciência e de uma nova cultura, que, em certo sentido, é a destruição da leitura.»

Francisco José Viegas, editorial da revista Ler, Março 2009

sexta-feira, 6 de março de 2009

Óh não!

Tem dias.

Andrew Bird - Oh no

«Só sei dos caminhos que percorremos sós»

À entrada do fim-de-semana, chuva miúda lá fora, promessa graúda no céu, amordaçado por um negrume que deliciosamente me acorrenta à terra.
Que embala que nem música triste em voz quase sussurrada.
[1, 2, 3, 4, 5...conto às vezes para mim, contra o ruído da chuva, enquanto olho para lá fora.]
Para que conste, até faço parte do clube que não usa chapéu de chuva.
[Nunca percebi essa da necessidade de vestir a camisola, literalmente falando, do clube pelo qual puxamos. Quase cegamente às vezes.]
Janela entreaberta a ouvir o barulho da chuva a cair, no silêncio entre 2 faixas na aparelhagem.
E de repente, se me concentrar bem, soam a palmas de tão estupidamente rítmicas e vindas de todo o lado.
[Porque temos mesmo de começar da casa de partida?]

Tenho para mim que ninguém pára à janela num dia de chuva para apreciar.
[P´ra pensar.]
E ainda não percebi bem porquê.

A mim, a chuva tem este efeito.
Silêncio, "palmas", música.
Silêncio, "palmas".

A próxima faixa é esta então:
Okkervil River - Lost Coastlines
[sim, eu sei :)]

Acerca dos ensinamentos

Nunca ninguém me avisou do choque que seria o dia em que, certo ou não dos meus conhecimentos e do seu rigor, seria altura de ensinar outros. Por direito adquirido. Só. Gelo metafísico, para quem sente ter ainda tanto para aprender.

Na boca dos outros, a experiência- por pouca que seja- traz a capacidade de ensinar menos experientes. Não creio que seja bem assim. Encaro assim isto de ensinar seja o que for (quanto tempo for) como um dos maiores deveres (e desafios) da nossa existência. Não o tomo pois como um direito universal, pseudo-paternalidade de quem é mais velho. Qual bom filho, sempre exigi também que fosse bem ensinado.

Conselhos todos nós podemos dar (há-os bons ou maus) mas ensinamentos não será bem assim. Acho mesmo que não. E ainda não descobri o que nos leva a ter certeza se temos ou não esse dom. Acredito que, pelo menos num nível superior, tamanha capacidade radica não só na clareza, domínio do conteúdo e confiança transpirada na transmissão dos mesmos, mas também muito nessa coisa a que se vulgarizou chamar de fascínio, deslumbramento, admiração, carisma (a propósito, há uns dias na Super Interessante um artigo sobre a importância da imagem na sedução- parece que pessoas bonitas convencem mais facilmente, ocupam lugares de destaque por naturalidade). Simples captação do momento, to shine or not to shine. Mais: tenho a certeza que em poucos minutos fascinei-me eternamente (ou pelo menos, por um bom tempo que ainda dura até hoje) por coisas que ter-me-iam passado ao lado, e que de outra forma não me teriam marcado, se naquele preciso instante não me tivessem sido ensinadas da maneira que foram.
Palavras certas, expressões correctas, gestos brilhantes, imprintings certeiros. A lógica aliada à estética é o paraíso.


De forma que tudo isto mexeu comigo muito mais do que a minha primeira entrega de declaração de rendimentos (se é que isso mexe com alguém).

domingo, 1 de março de 2009

«Havias de me ouvir assobiar»

Andrew Bird - Sovay (live)



Hoje a "missa", na voz de outro grande pároco.
O sermão é dado assim em jeito de assobio.
Fenomenal.

Dos diários em terra firme (fim)

Depois do filme há uns anos atrás, lancei-me na leitura dos diários (Viajem pela América, Che Guevara, Edições Dinossauro, 1996), após ter descoberto esta aquisição de então, forrada a umas boas gramas de pó, na minha estante. Os diários elaborados por Che em 1951 (então com 23 anos), aquando da sua primeira viajem com o amigo Alberto Granado. Os mesmos que deram origem então ao filme.
Anos mais tarde (já com 25 anos) havia de repetir a façanha, agora com outro amigo (Carlos Ferrer- Calica), viajem essa que também resultou num livro, recentemente editado (De Ernesto a Che, Guerra e Paz), quase meio século depois, desta feita na voz do companheiro, mas sem esquecer o enfoque inevitável naquela personagem histórica.

Muito mais do que quaisquer ideologias (o que é a vida senão uma sucessão de ideais- ou o definitivo momento da sua ausência, a burilar dentro de nós?), claramente ainda bastante embrionárias num Ernesto social ainda em construção (e para o qual muito ajudou esta viagem). A certeza que a juventude é a melhor altura para partir à descoberta do mundo, dos outros e assim (porque não?) também de nós próprios.
Plasticidade, ingenuidade, sonho, alguma loucura, força, ternura (e porque não também alguma indiferença egoísta? daquela que nos permite largar tudo quando queremos...de quem tem uma vida pela frente), camaradagem e fraternidade, tempo (claro- e tempo é dinheiro, não vale a pena negá-lo), acuidade máxima dos 5 sentidos, registos mnésicos frescos. Verdadeiras esponjas. Eis os ingredientes principais.
Fica o "bichinho" da viagem. (Mais ainda). Não de avião (do rápido e confortável avião) mas por terra. De descobrir a América do Sul e qualquer pedaço navegável no planisfério, mas também à imagem de Che, das diferenças no nosso próprio país, no nosso velho continente até. Da viagem não inconsequente.
Ainda que a ideia da descoberta esteja nos dias que correm banalizada, facilitada quiçá até. Toda a gente parte de mochila para algum lado (laptop incluído) e volta cheio de histórias para contar. Tropeçamos nestas ao entrar em qualquer livraria. Fico a pensar qual o sentido de partir para uma expedição deste tipo (e porque corremos sempre o risco de não trazer grande coisa de volta- "A viagem correu bem?") com a obrigação de ter à partida uma história pré-acordada, roçando quase a subversão das coisas: a celebração da chegada quando ainda mal se partiu.

Pois que de uma viagem não se pretende na maioria das vezes que seja dura, mas sim descansada, é certo. O ritmo das coisas assim o dita, não vale a pena contrariá-lo, não vale a pena julgar quem assim o faz. Todos nós já o fizemos, todos nós o faremos um dia. Mas esquecemo-nos que o mais importante talvez seja o caminho e não o fim, que talvez o verdadeiro sentido daquela seja a necessidade de nos esticarmos ao fim de um dia, mortos de cansaço. Aí sim, algures entre meia dúzia de passos perdidos no horizonte que ficou para trás, estamos a escrever a história, a mudar(-nos). A viajar.


Imagem retirada de um blog

Ainda os diários dos outros (5)

Do borbulhar dos ideais.
As estrelas crivavam de luz o céu daquele povoado serrano e o silêncio e o frio tornavam a escuridão imaterial. Era- não sei bem como explicá-lo- como se toda a substância sólida se volatilizasse no espaço etéreo que nos rodeava, nos roubava a individualidade e nos fazia sumir, transidos, na negrura imensa. Nem uma nuvem a bloquear uma porção de céu estrelado, para dar perspectiva ao espaço. No entanto, a uns metros, a luz mortiça de um farol dava alguma cor às trevas circundantes.
A cara do homem perdia-se na sombra. Só emergiam, como centelhas, os seus olhos e a brancura dos quatro dentes dianteiros. Ainda não sei se foi o ambiente ou a personalidade do indivíduo o que me preparou para receber a revelação. Mas sei que ouvira muitas vezes os argumentos empregados, esgrimidos por pessoas diferentes, e nunca me tinham impressionado. Na realidade, o nosso interlocutor era um tipo interessante; fugido, em jovem, de um país da Europa para escapara ao punhal dogmatizante, conhecia o sabor do medo (uma das poucas experiências que nos fazem dar valor à vida). Depois, viajando de país para país e passando por milhares de aventuras, tinha dado com os ossos nessa região afastada e ali esperava pacientemente o momento do grande acontecimento.
Depois das frases triviais e dos lugares comuns com que cada um apresentou a sua posição, quando já a discussão esmorecia e estávamos prestes a separar-nos, ele deixou cair esta frase, com o mesmo riso de garoto pícaro que sempre o acompanhava, acentuando o contraste dos quatro incisivos dianteiros: "O futuro é do povo e, pouco a pouco ou de repente, ele vai conquistar o poder, aqui e em toda a terra. O mau é que tem de civilizar-se e isso não se pode fazer antes, mas depois de tomar o poder. Só se civilizará aprendendo à custa dos seus próprios erros, que serão muito graves, que custarão muitas vidas inocentes. Ou talvez não, talvez não sejam inocentes porque cometerão o enorme pecado contra natura que significa não ter capacidade de adaptação. Todas essas vítimas, todos os inadaptados, você e eu, por exemplo, morrerão maldizendo o poder que contribuíram para criar, com sacrifício às vezes enorme. É que a revolução, na sua forma impessoal, roubar-lhe-á a vida e até utilizará a memória do que deles ficar como exemplo e instrumento para domesticar a juventude que surja.
O meu pecado é maior, porque eu, mais subtil ou com maior experiência, (chame-lhe como quiser) morrerei sabendo que o meu sacrifício corresponde só a uma obstinação. Que simboliza a civilização apodrecida que se desmorona e que mesmo que não modifique em nada o curso da história, ou a impressão pessoal que de mim tenha, você morrerá com o punho fechado e os dentes cerrados, numa perfeita demonstração de ódio e combate, porque não é um símbolo (algo inanimado que se toma como exemplo). Você é um autêntico membro da sociedade que se desmorona: o espírito da colmeia fala pela sua boca e move-se nos seus actos; é tão útil como eu, mas desconhece a utilidade do contributo que dá à sociedade que o sacrifica".
Vi os seus dentes e a expressão picaresca com que se adiantava à história, senti o aperto das suas mãos e, como o murmúrio longínquo, a protocolar saudação de despedida. A noite, depois de recuar ao contacto das suas palavras, tomava-me novamente, confudindo-se com ela. Mas, apesar do que ele dissera, agora sabia...sabia que, no momento em que o grande espírito director der o enorme golpe que dividirá toda a humanidade em apenas duas facções antagónicas, estarei com o povo. E sei, porque o vejo impresso na noite, que eu, o ecléctico dissecador de doutrinas e psicanalista de dogmas, uivando como um possesso, assaltarei as barricadas ou trincheiras, tingirei de sangue a minha arma e, louco de fúria, degolarei todos os vencidos que me caiam nas mãos. E vejo-me, como se um cansaço enorme derrubasse a minha recente exaltação. cair imolado à autêntica revolução estandardizadora de vontades, pronunciando o "mea culpa" exemplar. Já sinto as narinas dilatadas, saboreando o acre odor de pólvora e de sangue, da morte inimiga; já crispo o meu corpo, pronto para a luta, e preparo o meu ser como um reduto sagrado, para que nele ressoe, com vibrações novas e novas esperanças, o uivo bestial do proletariado triunfante.

in Viagem pela América, Ernesto Che Guevara

Ainda os diários dos outros (4)

Dos momentos de verdadeira transcendência e eloquência, elevadas pela sinceridade da palavra jovem e sonhadora.
À noite, depois de passar por casa do doutor Bresciani, que nos presenteou com uma rica e abundante refeição, receberam-nos no nosso refeitório com a bebida nacional, o pisco, de cujos efeitos no sistema nervoso central Alberto tem experiência exacta. Já com ânimos um tanto alegrados, o director da colónia fez-nos um brinde muito simpático e eu, já meio "piscado", elaborei mais ou menos o discurso que se segue:
"Bom, é uma obrigação para mim agradecer com algo mais que um gesto convencional o brinde que nos oferece o Dr. Bresciani. Nas condições precárias em que viajámos, só nos resta a palavra como recurso da expressão afectiva, e é empregando-a que quero manifestar o meu agradecimento, e o do meu companheiro de viagem, a todo o pessoal da colónia que, quase sem nos conhecer, nos proporcionou esta magnífica demonstração de afecto, que significa para nós a deferência de festejar o nosso aniversário, como se fosse a festa íntima de algum de vós. Mas há algo mais; dentro de poucos dias deixaremos o território peruano, e por isso estas palavras assumem um segundo significado, o de uma despedida. Aqui ponho todo o meu empenho em expressar o nosso reconhecimento a todo o povo deste país, que sempre nos cumulou de amabilidades, desde a nossa chegada a Tacna. Quero salientar mais uma coisa, um pouco à margem do tema deste brinde: ainda que a modéstia das nossas pessoas nos impeça de ser porta-vozes de tal causa, cremos, e depois desta viagem mais firmemente que antes, que é completamente fictícia a divisão da América em nacionalidades incertas e ilusórias. Consitituímos uma só raça mestiça que, desde o México até ao estreito de Magalhães, apresenta notáveis semelhanças etnográficas. Por isso, procurando libertar-me de toda a carga de provincialismo estreito, brindo pela Perú e pela América Unida".
As estrelas crivavam de luz o céu daquele povoado serrano e o silêncio e o frio tornavam a escuridão imaterial. Era- não sei bem como explicá-lo- como se toda a substância sólida se volatilizasse no espaço etéreo que nos rodeava, nos roubava a individualidade e nos fazia sumir, transidos, na negrura imensa. Nem uma nuvem a bloquear uma porção de céu estrelado, para dar perspectiva ao espaço. No entanto, a uns metros, a luz mortiça de um farol dava alguma cor às trevas circundantes.

in Viagem pela América, Ernesto Che Guevara

Ainda os diários dos outros (3)

Dos truques cúmplices de qualquer boa amizade.
Quando faltava pouco para amanhecer, encontrámo-nos com um par de bêbados e iniciámos o nosso magnífico número do aniversário. A técnica é a seguinte:
1) Diz-se em voz forte uma frase inicial, por exemplo: "Che, por que não te apressas e não te deixas de parvoíces?". O candidato cai no logro e imediatamente nos pergunta de onde vimos, inicia-se a conversa.
2) Começa-se a contar as dificuldades em voz suave, com o olhar perdido ao longe.
3) Intervenho eu e pergunto a data. Alguém a diz; Alberto suspira e comenta: "Olha que coincidência, faz hoje precisamente um ano!" O candidato pergunta: um ano que quê? Responde-se: que iniciámos a viagem.
4) Alberto, muito mais fiteiro que eu, lança um suspiro terrível e diz: "Que pena estarmos nestas condições! Se não, poderíamos festejar..." (diz-me isto como que confidencialmente). O candidato oferece-se logo e nós fazemo-nos esquisitos um momento, dizendo-lhes que não podemos retribuir-lhe, etc, até que aceitamos.
5) Depois do primeiro copo, eu nego-me terminantemente a aceitar mais um trago e Alberto faz troça de mim. O anfitrião zanga-se e insiste; eu nego-me, sem dar razões. O homem insiste e então eu, muito envergonhado, confesso-lhe que na Argentina o costume é comer enquanto se bebe. A quantidade de comida já depende da cara do cliente, mas é esta é uma técnica bem apurada.


in Viagem pela América, Ernesto Che Guevara

Ainda os diários dos outros (2)

Da viagem (vi)vida.
Assim, a moeda foi lançada ao ar, deu muitas voltas; caiu umas vezes "cara", outras "coroa". O homem, medida de todas as coisas, fala aqui pela minha boca e relata na minha linguagem que os meus olhos viram; na melhor das hipóteses, em cada dez "caras" possíveis só vi uma "coroa", ou vice-versa; é provável e não há atenuantes; a minha boca narra o que os meus olhos lhe contaram. A nossa vista nunca foi panorâmica, foi sempre fugaz, nem sempre equitativamente informada, os juízos são demasiado determinantes? De acordo, mas esta é a interpretação que um teclado dá ao conjunto de impulsos que levaram a martelar as teclas e esses fugazes impulsos morreram. Não há sujeito sobre quem exercer o peso da lei. O personagem que escreveu estas notas morreu ao pisar de novo terra argentina; o "eu" que as ordena e burila não sou eu; pelo menos não sou o mesmo eu interior. Esse vaguear sem rumo pela nossa "Maiúscula América" mudou-me mais do que julguei.

Agora sei, quase com uma fatalista conformação, que a minha sina é viajar, a nossa sina, melhor dito, porque Alberto nisso é igual a mim; no entanto, há momentos em que penso com profundo anseio nas maravilhosas regiões do nosso Sul. Talvez um dia, cansado de rodar pelo mundo, volte a instalar-me nesta terra argentina e então, se não como morada definitiva, pelo menos como lugar de trânsito para outra concepção do mundo, visitarei novamente e habitarei a zona dos lagos das cordilheiras.

in Viagem pela América, Ernesto Che Guevara