quarta-feira, 24 de setembro de 2008

Entre : linhas

Abri a primeira página.
À esquerda, impossível de passar despercebida a qualquer leitor, preto e branco, com um jardim ao fundo, um retrato bem à moda antiga de uma qualquer família ocidental. Não faltam os vestidinhos lindos, os sorrisos, olhares e poses ensaidas de véspera para o mítico dia da visita do fotógrafo.

À direita, começa assim:

Um dia há vida. Um homem, por exemplo, de perfeita saúde, nem sequer velho, nenhuma história de doenças. Tudo está como sempre esteve, como sempre estará. Ele passa de um dia a outro, não se ocupa de outra coisa senão dos seus assuntos, sonha apenas com a vida que tem à sua frente. E então, de súbito, acontece que há morte.
Um homem solta um pequeno suspiro, afunda-se na sua cadeira, e é a morte. O carácter súbito desse facto não deixa o menor espaço ao pensamento, não dá à mente a menor hipótese de procurar uma palavra capaz de a confortar. A única coisa com que ficamos é a morte, o irredutível facto da nossa própria mortalidade. A morte depois de uma longa doença, podemos aceitá-la com resignação. Mesmo a morte acidental, podemos imputá-la ao destino. Porém, o facto de um homem morrer sem nenhuma causa evidente, o facto de um homem morrer simplesmente porque é um homem, deixa-nos tão perto da invisível fronteira entre vida e morte que não sabemos de que lado estamos. A vida converte-se em morte e é como se esta morte sempre tivesse sido dona e senhora desta vida. Morte sem aviso. O que é mesmo que dizer: a vida pára. E pode parar a qualquer momento.


Recebi a notícia da morte do meu pai há três semanas. Era sábado de manhã e eu estava na cozinha a fazer o pequeno-almoço para o meu filho Daniel. A minha mulher dormia ainda no piso de cima, quente sob as cobertas, desfrutando umas horas extras de sono. O Inverno no campo: um mundo de silêncio, fumo da madeira, brancura. A minha cabeça estava cheia de pensamentos sobre as páginas que escrevera na noite anterior e delineava já a tarde, o período do dia em que poderia voltar ao trabalho. E foi então que o telefone tocou. Soube nesse mesmo instante que havia um problema. Ninguém telefona às oito da manhã de um sábado, a menos que seja para dar notícias que não podem esperar. E notícias que não podem esperar são sempre más notícias.
(...)


in Inventar a Solidão, Paul Auster


Uma foto e dois parágrafos bastaram então para me convencer.
Confesso que andava à procura de algo assim há já algum tempo. Não me passaria pela cabeça que o encontrasse em Paul Auster, sequer num livro com este título.
Estou a digerir cada pedacinho, entre outras leituras técnicas esporádicas que o ofício às vezes obriga.
Para já aconselho(-me). A terceiros, só mais tarde direi se sim ou não.

A sugestão foi da Clara e como há pouca coisa melhor do que um devido reconhecimento, aqui fica o meu. Obrigado.
Lá para o final da coisa, pode ser que falemos melhor, ok?

1 comentário:

clara disse...

Next:
- A mancha humana do Philip Roth
- A náusea do J P sartre
- ?

desde que tu o leste fiquei eu cheia de vontade de o reler.