sábado, 27 de dezembro de 2008

Entre:linhas (mais)

Na hora da despedida do HSM, a crónica mais improvável, quiçá das menos brilhantes do livro de crónicas de Pedro Mexia.
Ainda assim, e por marcar este preciso momento, a que escolhi para pôr aqui.


Santa Maria

O Hospital de Santa Maria (HSM), em Lisboa, não é exactamente um elefante branco, visto que não se trata de um edifício inútil. Eu penso nele mais como uma grande baleia branca (como no romance de Melville) ou um grande peixe que nos engole (como que engoliu Jonas ou Pinóquio). É um gigante no meio da cidade, que mesmo quem conhece não conhece inteiramente. Há uns anos passei uma «temporada no inferno» nesse gigantesco estaleiro. E ainda hoje é das minhas memórias mais vívidas, embora às vezes bastante enevoada pelo sofrimento alheio e pelos meandros dos intermináveis corredores.
Recordei de novo tudo isto por causa de uma reportagem publicada na revista Visão e assinada por Ricardo Fonseca. Grande parte do fascínio do texto está desde logo na simples enumeração numérica. O hospital de Santa Maria é uma verdadeira cidade visível e invisível. Cento e trinta mil metros quadrados, 11 pisos, 1109 camas, mais de cinco mil funcionários, 1118 médicos e 1595 enfermeiros, 18 mil pessoas que passam diariamente pelo conjunto de edifícios. Além das várias secções correspondentes às especialidades, há todo um mundo oculto, as catacumbas, que mesmo os seguranças evitam e onde às vezes se descobre gente vinda de lado nenhum. É esse lado mastodôntico e tenebroso que ainda me assombra. Uma vez atravessei o hospital para uns exames e fui vendo essas 4500 portas (pensando eu que chegava ou não chegava nunca) e 5400 janelas (que tinham ramagens e pássaros e um alto negrume noite dentro). Os corredores gigantescos . Os elevadores, apenas 16, mas cheios e pesados. E depois essa espantosa fauna de estagiários e alunos de medicina e mães chorosas e o homem cigano que se esvaiu em sangue na cama em frente da minha. E o jovem médico que discutiu Nietzsche comigo. A enfermeira de seios muito redondos e cabelos muito pretos que parecia quase feliz no meio da tristeza que no fundo não aceitava. O director que passava revista às tropas com aforismos. As visitas acabrunhadas. O meu tempo que ainda não tinha chegado.
O Hospital de Santa Maria é um edifício alemão construído no início dos anos cinquenta. É ainda hoje o maior hospital português. Depois desse episódio ainda nos tempos de faculdade nunca lá mais estive, mas não esqueço essa sua enorme fachada degradada, umas traseiras quase soviéticas de cimento e fissuras e tinta estalada, e eu achando que aquilo parecia uma imensa metáfora concentracionária mas muito concreta nas vidas que a enxameavam. No hospital se nasce (há uma maternidade) e se morre (há uma morgue). E tudo o mais (que não é muito) que entre nascimento e passamento acontece, incluindo almoços e defecações. Talvez tenha sido isso que também me chocou na altura: imaginar que ali dentro estava tudo, que fora daquele sítio tudo eram ilusões e distracções, porque nessa baleia branca estava o que somos. Somos neurologia, cardiologia, coisas assim. Pedaços mal colados e mal empregados.E uma vida toda acontece entre aquelas paredes que nunca acabam, mesmo quando um de nós acaba. Leio na reportagem que no hospital usam a expressão «levantar voo» como eufemismo administrativo da morte de algum inquilino. É mesmo isso que queremos, deitados numa cama, quando vemos uma avezinha que se aventura, saltitante, empoleirada na árvore que espreita os pacientes. Queremos levantar voo, acima do cimento e da neurologia, acima deste grande hospital em que vivemos. E isso mais tarde ou mais cedo acontece. O hospital (o que agradeço) cuida para que seja mais tarde.

1 comentário:

Sahaisis disse...

Muito bom o resumo, daquele espaço que foi a minha casa durante quatro anos...não acrescentou apenas Pedro Mexia que os corredores são labirintos, que mudam de sítio :)...tenho a certeza...