sábado, 22 de novembro de 2008

Crónica de uma morte anunciada

Naquele momento não se ouviram as campainhas do chinfrim habitual, nem muito menos pairaram inquietações no ar, se trocaram olhares cúmplices de nervosismo, fracasso ou desilusão, sequer levitaram suspiros. Nada, mesmo nada, tudo sereno. Do lado de fora da janela, as obras na rua não pararam. E no corredor além da porta, o vaivém contínuo dos outros sempre. Distraídos, impunes, cúmplices, indiferentes ao que ali se passava. ("Ninguém se rala" com as despedidas dos outros, cruzamo-nos vezes sem conta com pessoas que nada nos dizem a dizerem adeus por aí fora e nós na nossa santa vidinha.)

Momentos em que o silêncio e a sobriedade de um exame técnico, de uma auscultação ganham uma dignidade indescritível. Em 3 anos como aluno e noutras tantas vezes como interno agora, nunca lhe senti tanta força, certeza e firmeza no gesto. E o silêncio, e o vazio, aquele vazio interior que nos faz parecer que o esófago e a traqueia são um tubo oco que mais parece uma anilha. (Se a visse na rua a despedir-se de alguém, sentir-me-ia assim? Acho que não...)

"Midríase fixa, ausência de resposta à estimulação dolorosa, silêncio à auscultação, assistolia no traçado electrocardiográfico". Tudo isto em meia dúzia de explicações, assim, ali (como eu gostaria de poder vir a ser lição para alguém assim, e a propósito, o meu muito obrigado.). Inevitavelmente, a memória da lição para a vida que a minha avó me deu no dia em que também ela me disse adeus assim, doce e serenamente.

"Está verificado". E pé-ante-pé, antes do vaivém do corredor, olhar para trás uma última vez (acho que não consegui evitá-lo...). A cor: um verde (a graça da esperança...) quase florescente que revelava de caras um dos males de que padecia: fígado.
"Paragem cardiopulmonar irreversível", parece que foi assim que ficou escrito no diário. Perdoem-me a crueldade, mas havia já alguns dias em que, pese embora a ausência das palavras, já lá constava tamanho registo.

E hoje a notícia mais que anunciada chegou-nos assim como quem nem precisa de tocar à porta antes de o dizer. Pressente-se a passagem. De tal forma, que o mundo lá fora nem sequer "topou".
Na memória, guardarei para sempre a prontidão com que a minha tutora se disponibilizou para, mesmo não sendo a sua médica, não a abandonar naquele momento (haverá "momentos" quando tudo acaba?) e ao telefone mais tarde, as bonitas palavras que remetem para um gesto, em si, cheio de vida: "a Sra. X despediu-se".
No momento em que eu morrer, também eu quero que digam que, ao ritmo normal do mundo, me despedi. Só.

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