quinta-feira, 2 de outubro de 2008

Até que a vista nos doa (12)

Ainda Paul Auster.

Diz-se que um homem enlouqueceria se não pudesse sonhar à noite. Do mesmo modo, se uma criança não tiver a possibilidade de penetrar no imaginário, nunca estará em condições de enfrentar o real. A necessidade de histórias de uma criança é tão fundamental como a sua necessidade de comida, e manifesta-se do mesmo modo que a fome. Conta-me uma história, diz a criança. Conta-me uma história. Por favor, pai, conta-me uma história. Então, o pai senta-se e conta uma história ao seu filho. Ou então deita-se no escuro a seu lado, os dois na cama da criança, e começa a falar, como se no mundo não restasse outra coisa senão a sua voz, e conta uma história no escuro ao seu filho. Muitas vezes é uma história de fadas, uma história de aventuras. Mas, muitas vezes, mais não é do que um simples salto no imaginário. Era uma vez um menino chamado Daniel, diz A. ao seu filho que se chama Daniel, e estas histórias em que o miúdo é o herói são talvez as que mais lhe agradam. Do mesmo modo, conclui A., enquanto está sentado no seu quarto a escrever o Livro da Memória, ele fala de si mesmo como se de um outro se tratasse, a fim de contar a sua própria história. Para se encontrar nas páginas, ele tem de fazer de si um ausente, ele tem de se apagar. E é por isso que ele diz A., mesmo quando quer dizer Eu. Porque a história da memória é a história de ver. E ainda que as coisas a ver já não estejam lá, é uma história de ver. A voz, portanto, prossegue. E mesmo quando o miúdo fecha os olhos e adormece, a voz do pai continua a falar no escuro.

in Inventar a Solidão, Paul Auster


Ando deliciado com as suas criações. Todas as que conheço até à data.

Sophie Auster, acrtiz e cantora, filha de Paul Auster

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